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Diante do aumento de circulação do fentanil no país e a fim de evitar surtos de dependência como há nos Estados Unidos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária incluiu na quarta-feira as substâncias usadas na produção da fentanila — nome científico do sedativo opióide muito usado em hospitais — na lista de “precursoras de entorpecentes e psicotrópicos”. A inclusão dá às polícias base legal para que remessas ilícitas desses produtos sejam apreendidas e para combater a fabricação clandestina da droga.
Em fevereiro, foram encontradas pela primeira vez ampolas de fentanil em uma apreensão de tráfico no Brasil. As ampolas estavam com malotes de maconha e cocaína em um depósito de uma facção criminosa no Espírito Santo, e foram recolhidas em uma operação da Polícia Civil. Agentes da Divisão Antidrogas dos EUA foram a Vitória se informar sobre o caso.
A fentanila já é uma substância controlada no Brasil e faz parte da Lista A1, de entorpecentes, da Anvisa. A sua aplicação obedece a regras do Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas (Sisnad). Qualquer atividade com a fentanila está sujeita a controle, estabelecimentos que a vendem precisam ter autorização da Anvisa, e o armazenamento deve ser “sob chave ou outro dispositivo que ofereça segurança”. Nos hospitais, toda a movimentação do sedativo tem de ser registrada e é preciso incinerar o remédio no seu descarte. A prescrição só pode ser feita com a receita amarela, para medicamentos controlados.
O Brasil tem empresas que sintetizam a fentanila, mas a maior parte da matéria prima é importada. Agora, a Anvisa incluiu as substâncias 4-AP; 1-boc-4-AP e Norfentanil, as mais usadas na fabricação ilícita de fentanila , na lista D1 (substâncias precursoras de entorpecente ou psicotrópicos). No ano passado, elas haviam sido incluidas na lista de controle da Comissão de Entorpecentes do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime.
Fentanil foi apreendido pela primeira vez no Brasil no ES: opióide é responsável por milhares de mortes nos EUA — Foto: Divulgação
— Antes, qualquer pessoa poderia comprar essas substâncias e usá-las num laboratório clandestino. Agora, não terá mais facilidade para importação, por exemplo — explica o diretor de Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, Jedson Nascimento.
Pesquisador da Fiocruz e coordenador da Redes de Saúde em abuso de drogas, Francisco Inácio Bastos conta que, nos EUA, houve uma proliferação de laboratórios clandestinos para a produção da droga, que gera uma sensação de relaxamento mas pode bloquear a circulação respiratória. Atualmente é possível encontrar na deep web fórmulas para fabricação caseira.
— Quando aprendem como faz, a receita vai ser copiada — diz Bastos.
Diferente do que aconteceu nos EUA e em países da Europa, onde a prescrição de opióides cresceu de forma desregulada, o Brasil não viveu um surto com o fentanil. Mas hoje o contexto é diferente, o que exigiu atenção das autoridades.
— O Brasil tem bom controle sobre esses medicamentos, melhor do que nos EUA e Europa. A inclusão na lista não havia acontecido antes porque não existia a procura. A partir do momento em que há um risco, precisa fechar o cerco — resume Jedson.
kit de intubação
Na pandemia da Covid-19, diante da alta de casos graves, o kit de intubação estava entre os produtos mais demandados nos hospitais. Sedativos, analgésicos e bloqueadores musculares faziam parte do kit e o fentanil ganhou destaque por ser um dos mais eficientes para o procedimento. Em 2020, o produto chegou a faltar nos hospitais brasileiros, devido à demanda mundial. Em 2021, após uma resolução extraordinária da Anvisa ter flexibilizado requisitos de importação, houve uma explosão de vendas.
Em um hospital, o armazenamento e descarte do fentanil obedecem a regras rigorosas. Mas profissionais de saúde admitem que há brechas. Usualmente, o medicamento vem em ampolas de 2 ml, 5 ml ou 10 ml. Mas durante um procedimento médico, costuma-se usar apenas cerca de 3 a 4 ml. Com isso, a sobra precisa ser descartada.
— O que sobra do fentanil é descartado em uma caixa específica para entorpecentes que é incinerada — explica Jedson — Mas cada hospital tem uma rotina.
Orientador de uma tese de doutorado que mostra o aumento do uso e aquisição do fentanil nos hospitais brasileiros durante a pandemia, o médico e pesquisador da Fiocruz Francisco Bastos se preocupa com uma possível alta de uso do sedativo.
— O Brasil é imenso, tem milhares de planos de saúde e hospitais. Toda vez que há aumento de uso de opioide ou de outra substância na área médica, há muita chance de vazamento. Tendo o mel, sempre alguém quer se lambuzar. Ontem aconteceu no Espírito Santo, mas amanhã pode ser em São Paulo ou no Pará. Já precisamos estar preparados para o aumento de circulação do fentanil no mercado ilegal — avisa Bastos.
A preparação defendida por Bastos envolve o rastreio da Polícia Federal, que precisaria passar a examinar cargas de drogas apreendidas a fim de detectar se há fentanil misturado à cocaína ou outras substâncias; vigilância da Anvisa; e treino de primeiros socorros para uso de naloxona, substância usada para bloquear efeitos de entorpecentes e evitar overdoses.
— Não há por que reproduzir a situação americana, já estamos avisados — diz Bastos, lembrando que, nos EUA, o fentanil causou em 2022 mais mortes do que os acidentes de trânsito.
mistura potencializa
No exterior, o sedativo costuma ser consumido diretamente ou misturado a outras drogas, o que potencializaria seus efeitos.
— O fentanil é muito eficiente em reduzir a dor a algo suportável. É cem vezes mais potente que a morfina e é usado desde a década de 1970 no ambiente hospitalar — explica Jedson, que se preocupa com a mistura com outras drogas. — Pelo desconhecimento que eles (traficantes) têm de farmacologia e química, provavelmente nem sabem o que estão fazendo. Nenhum opioide é livre de complicações, principalmente associado a outra droga. Posso garantir que não é um bom caminho.
Questionada sobre ações contra a possível alta do fentanil, a Anvisa informou que, quando desvios de produtos são comunicados, as autoridades encarregadas de repressão do uso são avisadas. Após a resolução extraordinária de 2021, a agência explicou que publicou alertas aos profissionais de saúde sobre os riscos envolvidos, fez consultas com gestores de risco de hospitais e um webinar para compartilhar de informações. Segundo a agência, não foram identificados, desde 2021, “sinais de segurança que apontassem para maior risco do uso de fentanil importado do que de produtos desse ativo regularizados pela Anvisa”.
Na operação da Polícia Civil do Espírito Santo, foram encontradas 31 ampolas de fentanil. O delegado Tarcísio Otoni, do Departamento Especializado de Narcóticos, acredita que o produto seria misturado à cocaína que estava no depósito. A trajetória da carga é investigada. Mas já se sabe que ela veio de um laboratório credenciado de Minas Gerais. Falta ser esclarecido se o desvio aconteceu antes ou depois da chegada do fentanil ao hospital. Segundo Otoni, a droga batizada seria vendida provavelmente no Espírito Santo:
— A gente precisa responder se são traficantes do Espírito Santo tentando criar essa demanda ou se vem dos usuários. A gente não descarta a venda internacional, mas acreditamos que seria para mistura na cocaína e distribuição local.
Foto: Arte de Renata Amoedo
*O Globo
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