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Um tsunami de carinho atingiu as redes sociais do músico e apresentador de TV João Gordo depois que ele publicou, na semana passada, uma foto em que aparecia fazendo nebulização com um oxímetro no dedo. “Quilômetros de cigarro e montanha de maconha, alguns passam ileso, outros não”, escreveu o vocalista do Ratos de Porão, um dos mais populares, musicalmente agressivos, liricamente combativos e longevos grupos do punk brasileiro.
— Acho que eu sou muito mais querido do que odiado — avalia, aos risos, por telefone, esse João nada bossa nova, que desde os anos 1980 enfrenta, com mais ou menos paciência e humor, a acusação de ser um “traidor do movimento punk”. — Fico feliz de o pessoal se preocupar comigo, mas não é para todo mundo ficar passando a mão na cabeça do gordinho, para ficar com dó de mim. Tudo isso aconteceu é porque eu sou um retardado!
O cantor/gritador parou de fumar há dois anos (“de vez em quando dou uns bong nuns baseados, mas não é como era antes”) e há três, desde que foi diagnosticado com Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica, vive uma rotina de inalações de corticoides e de ingestão de antibióticos.
— Fiquei quatro meses na UTI, foram seis internações. Eu já estava na pandemia antes de todo mundo — ironiza o paulistano de 58 anos de idade. — Estou bem e tal, mas se eu ando até a esquina já estou morrendo. Agora no inverno fui fazer uns shows no Sul, voltei gripadão e comecei a sentir falta de ar de novo.
No fim de semana, por causa da sua situação pulmonar, João teve que cancelar um show que faria com o Asteroides Trio: um tributo rockabilly, acústico, aos 40 anos dos Ratos de Porão, grupo que este ano lançou seu 13º álbum, “Necropolítica”, e tem uma série de shows marcados. O cantor garante presença: diz sentir-se hoje melhor do que na pandemia, quando, além dos problemas pulmonares, teve depressão e ganhou 20 quilos que lhe afetaram a coluna e os joelhos.
— Minha luta contra a obesidade vem desde quando era criança. Já passei por operação [de redução] de estômago e outras ações cirúrgicas. A última que eu fiz se chama plasma de argônio, que cria uma espécie de calo na boca do estômago, e emagreci dez quilos. Mas, por um passe de mágica, voltei a comer igual antes e engordei tudo de novo — revela.
Colega dos tempos do rock underground de São Paulo, e depois da MTV, o VJ e músico Luiz Thunderbird encontrou em João Gordo o apoio decisivo para resolver um problema de saúde.
— Em meados dos anos 1990, João veio conversar comigo sobre meu incontrolável consumo de drogas. Me deu mesmo uma dura: “Se eu souber que você tá usando essa merda de casquinha [cocaína], vou te encher de porrada!” Não demorou muito e eu parei com as drogas — conta. — Daí, teve a volta. Ele estava alucinando nas drogas, teve um piripaque, e eu fui no hospital quando ele teve alta. Falamos sobre a situação e levei ele para casa. João é um grande e doce amigão!
Outros formatos
Paralelamente à música e às questões médicas, João Gordo segue com seus projetos de TV: recentemente, criou um crowdfunding para o “Panelaço”, programa no YouTube em que ele leva convidados à sua casa para uma entrevista enquanto um chef prepara uma refeição vegana (o cantor, aliás, é vegetariano há 18 anos). Depois de ele ter perdido alguns patrocínios, a produção estava sendo gravada nos estúdios da Mídia Ninja.
— [A perda dos patrocínios] dificultou a gente de pagar a técnica, e a gente quer manter um padrão de qualidade. E tem ainda um projeto de podcast, “Super plá”, de entrevistas. Tá tudo pronto com os equipamentos, só não tenho tempo para começar. Preciso gravar os “Panelaços” primeiro — conta ele, que segue com a mulher, Vivi Torrico, com o Solidariedade Vegan, programa que tenta atender carências alimentares da população de rua de São Paulo. — Muitas vezes, ela não tem água para beber, tem que beber da torneira do bar… Mas isso, se deixarem.
Quando fala de seu passado na TV, João lamenta ter participado de programas como o “Fundão MTV” (“um jogo de humilhação idiota”) e o “Gordo freak show”.
— Esse tinha umas torturas… mas quando as bandas gringas vinham ao Brasil, eu levava ao programa. Aquele Gordo hoje é diferente, os tempos mudaram — diz. —Estou tentando sempre me tornar uma pessoa melhor. Há uns 20 anos, eu era um bolsominion! Eu era escroto, homofóbico… Hoje sou um ser humano em construção e um filho da puta em desconstrução.
O álbum “Necropolítica” é a menina dos olhos de João Gordo em 2022. Um disco que foi lançado na Europa, nos EUA e na América do Sul e que nasceu do esforço do baixista Juninho. Durante a pandemia, o músico se juntou separadamente aos outros integrantes dos Ratos de Porão para compor.
— Quando vi, tinha 12 músicas para eu fazer a letra, e eu pensei: “Caralho, tem a maior distopia, negacionismo, fascismo, nazismo e racismo em torno de mim!”, e o disco ficou parecendo uma opereta, cada música tem a ver com a outra, e por isso se chama “Necropolítica”. Ele saiu e chocou muita gente, mas está rolando, e isso é o principal — alivia-se João.
Em faixas como “Alerta antifascista”, “Passa pano pra elite”, “Bostanágua” e “Guilhotinado em Cristo”, João Gordo fez o que faz em todos os discos dos Ratos: a crônica política dos tempos.
— Faço parte do punk, do hardcore… e o hardcore é isso. Cada disco dos Ratos de Porão reflete uma época da história do Brasil. Já vi professor dando aula com letra minha — orgulha-se o cantor, que frequentemente é alvo da ala direitista do rock e daquela para a qual, na melhor das hipóteses, música e política não devem se misturar. — O rock nacional tem alguns, mas isso vem mais do metal, um estilo em que os caras eram meio isentões. O metal é fascista e é racista, tem uns poucos no meio que são conscientizados.
Referência do rock brasileiro pós-anos 2000, a cantora Pitty conheceu João Gordo nos anos 1990, quando a sua banda, o Inkoma, abriu em Salvador um show dos Ratos de Porão — dos quais, por sinal, ela era muito fã.
— Quando vim para São Paulo e comecei a cruzar mais com o João, fui vendo que, além do cara da banda de hardcore e do ativista, tinha um ser humano com um coração absolutamente terno. Eu não sei se todo mundo tem noção do trabalho que ele faz com o Solidariedade Vegan e o quanto ele é amoroso com os amigos. Esse lado, que se contrapõe a essa casca dura que ele precisou desenvolver para transitar no mundo, precisa ser mostrado. Esse é o meu amigo.
Hoje, nas horas vagas dos Ratos, João tem se dedicado também ao projeto Brutal Brega, que recria clássicos da música muito popular brasileira em formato punk hardcore. Dois singles já foram lançados: os de “Fuscão preto” (Almir Rogério) e “Ciganinha” (Carlos Alexandre).
— Eu vivi os anos 1970 intensamente, tenho uma memória afetiva muito forte deles — diz o cantor. — Quando vi, estava com 35 músicas na lata. E tem desde “Não se vá”, da Jane e Herondy, que gravei aqui em casa com a Marisa Orth, a “Verdes campos da minha terra”, do Agnaldo Timóteo. E a partir disso caiu para o lado da MPB, a gente começou a pegar Sá e Guarabyra, Kleiton & Kledir, Caetano Veloso, Belchior, Ednardo… esse, a gente quer lançar depois do Brutal Brega.
Amigo de João há décadas, coautor da autobiografia “Viva la vida tosca” e diretor de seu antigo programa no Canal Brasil, “Eletrogordo”, o jornalista André Barcinski vê o vocalista como caso único de artista que é uma celebridade e nunca abdicou de ser ícone do underground:
— João é um cara muito mais culto e eclético do que as pessoas acham. É capaz de passar horas falando de samba e música brasileira, e tem um senso de humor muitas vezes obscurecido pela imagem pública de punk tosco.
Foto: Edilson Dantas
Fonte: O Globo
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