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Investigação revela que traficantes ‘terceirizaram’ serviços ilegais para milícia em favelas do Rio

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Em abril de 2021, o ex-PM Diego Nunes Rayol, apontado como um dos chefes de uma milícia que atua em Nilópolis e São João de Meriti, na Baixada Fluminense, usou o celular para fazer uma proposta inusitada. “Tem uma matemática boa pra te apresentar aí, de porcentagem de venda de gás. Não quero localidade, não quero nada. Quero botar um caminhãozinho ali dentro, cheio de gás, e vai vender o gás ali dentro. Entendeu? Com autorização”, explicou Rayol, num áudio enviado por um aplicativo de mensagens.

Seu interlocutor era o traficante Rafael Alves Esteves, o Lacraia, acusado pelo Ministério Público do Rio (MPRJ) de ser gerente da facção que controla a venda de drogas na favela Ás de Ouro, em Anchieta, na Zona Norte do Rio. O plano de Rayol era acabar com confrontos entre tráfico e milícia na região para que os dois grupos pudessem lucrar juntos: “Vai te dar uma porcentagem das vendas de cada gás aí. Tu vai ver que a gente vai ganhar um dinheirinho bom aí, entendeu?”, prometeu o ex-PM.

“Sociedade do crime”: mensagens que fazem parte de uma investigação da PF e do MPRJ Foto: Editoria de arte

‘Uma empresa’

Lacraia respondeu, também por áudio, que o assunto interessava. Rayol aproveitou a deixa para esmiuçar como funcionaria o esquema: “A gente vai botar um caminhão parado no campo enquanto um carrinho pequeno vai ficar rodando a comunidade toda. E bota um de vocês colado com o caminhão pra saber certinho quantos (botijões) tá vendendo”. A explicação convenceu o traficante. “Fechou, pô. Tem caô não. Isso vai fluir. Vai fluir”, concluiu Lacraia.

Diálogos do miliciano com comparsas e traficantes, que fazem parte de uma investigação conjunta da Polícia Federal e do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ, revelam um acordo até então inédito entre grupos criminosos armados no Rio: em Anchieta, traficantes “terceirizaram” para a milícia a exploração de uma série de serviços em favelas. Além do monopólio da venda de gás, o pacto também previa que os paramilitares da Baixada tivessem exclusividade para oferecer internet clandestina e vender cigarros ilegais nos domínios dos traficantes. Em troca, a milícia repartia com a facção parceira uma parte dos lucros.

Em uma das conversas, em 11 de fevereiro de 2021 — que vieram à tona graças a quebras de sigilo autorizadas pela Justiça —, Lacraia pediu a Rayol uma lista dos moradores que estavam devendo à milícia o pagamento por cigarros. Ao final da mensagem, o traficante pediu “desculpas por perturbar”. O miliciano reagiu com surpresa: “Tá maluco, Lacraia? Pô, para com isso. Perturbar o quê? A gente é sócio. A gente é uma empresa”.

Em outra mensagem, Rayol acertou com Samyr Jorge João David, então chefe do tráfico da Ás de Ouro e superior imediato de Lacraia, o início da exploração do serviço de internet clandestina na favela. Na conversa, o traficante disse que preferia que o pagamento fosse feito em forma de munição: “Era bom se esse amigo aí, esse dinheiro que ele vai me dar aí, me desse tudo de munição. Tá ligado? De 9. Ia ser melhor”.

 

“Sociedade do crime”: mensagens que fazem parte de uma investigação da PF e do MPRJ Foto: Editoria de arte

No período dos diálogos, entre dezembro de 2020 e maio de 2021, o ex-PM Diego Rayol estava preso, cumprindo uma pena de nove anos, no regime semiaberto, pelos crimes de roubo e extorsão. Segundo a investigação da PF, Rayol — que foi expulso da Polícia Militar por vender carros clonados em 2017 e acabou preso em flagrante um ano depois, após ser flagrado por policiais civis dirigindo um carro roubado com uma pistola — se comunicava com comparsas de dentro da Cadeia Pública Constantino Cokotós, no Norte Fluminense, e também aproveitava a autorização que recebeu da Justiça para trabalhar fora da cadeia para cometer crimes.

Em agosto de 2020, a Justiça autorizou o ex-PM a trabalhar como entregador de uma farmácia em Nilópolis — área de atuação da milícia. Segundo a decisão, o preso deveria trabalhar de terça-feira a domingo das 9h às 18h e teria que retornar ao presídio até duas horas depois do expediente. Numa das mensagens encontradas pela PF, no entanto, Rayol diz que ficou dentro da favela Ás de Ouro numa festa até “uma hora da manhã” — horário em que já deveria estar de volta ao cárcere. “Eu saí lá de dentro quase uma hora da manhã, entendeu? O dono é meu amigo, meu amigo mesmo”, afirmou o ex-PM, em 24 de abril de 2021.

Por conta dos diálogos, Rayol, Samyr e Lacraia foram denunciados, em março passado, pelo Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP. Ao todo, 19 pessoas viraram réus na Justiça por integrar ou colaborar com a milícia. Atualmente, Rayol não pode mais sair da cadeia para trabalhar: em abril passado, a Vara de Execuções Penais determinou a volta do preso para o regime fechado após um celular ter sido encontrado em sua cela. O GLOBO não conseguiu contato com a defesa do ex-PM.

Chefão foi morto

A investigação também revelou que o responsável pela instalação dos pontos de internet na Ás de Ouro foi um subtenente da PM, Felipe da Rocha Dias — que conciliava o trabalho no 6º BPM (Tijuca) com os afazeres designados por Rayol, seu superior na hierarquia da milícia, segundo o Gaeco. Para regularizar o pagamento de inadimplentes pelo serviço de internet, o subtenente usava um artifício: o desligamento do equipamento em toda a favela.

Essa investigação levou o subtenente Dias e Lacraia à prisão. Já Samyr David estava foragido até o último dia 9, quando foi morto por traficantes de uma facção rival que invadiram a favela.

Fonte: Extra

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