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Era madrugada do dia 14 de novembro de 1976, quando o Corpo de Bombeiros do Amazonas foi acionado para um resgate na rodovia AM-010, que liga a capital Manaus a outros municípios amazonenses. À época, os desafios geográficos e de estrutura da Amazônia, ainda maiores que os de hoje, atrasaram a chegada dos bombeiros. Na chegada, os profissionais se depararam com uma multidão que tentava entender o que havia acontecido. Um ônibus estava completamente submerso no rio Urubu. Quando retirado o cenário era comparável a de um filme de terror: 39 pessoas morreram dentro daquele veículo e partes dos corpos haviam sido devoradas por piranhas.
ARTE: AVG/REDE AMAZÔNICA
A maior tragédia rodoviária do Amazonas
Na noite do dia 13 de novembro de 1976, um sábado, passageiros se preparavam para embarcar em um dos ônibus que sairia de Manaus com destino à cidade de Itacoatiara – um dos principais municípios amazonenses. Entre os veículos, o de numeração 0546 da empresa Soltur (Solumões Transporte e Turismo), dirigido por José Aurélio Duarte, e no atendimento, a rodomoça Maria de Lurdes Moreira da Silva. Ainda no terminal, o jornalista Carlos Costa, estava indo à trabalho para a “Velha Serpa” – nome de origem portuguesa, que a aldeia de Itacoatiara recebeu em 1759, quando passou à categoria de Vila -, com a missão de cobrir as eleições municipais do dia 15 de novembro daquele ano. Enquanto aguardava o horário de partida foi abordado por um casal que queria trocar de ônibus e chegar mais rápido ao destino, para comemorar o casamento em lua de mel.
“Eu ia no ônibus que era a novidade na época. Naquela noite, um casal me abordou, pois queriam ir em lua de mel juntos e não tinham mais dois lugares disponíveis no “frescão” (ônibus com ar-condicionado), até que me convenceram e cedi meu lugar para eles, então fui no outro ônibus, que sairia pouco depois”, conta o jornalista, em entrevista à equipe do Portal Amazônia, em Manaus.
FOTO: REPRODUÇÃO/MANAUS DE ANTIGAMENTE
Motorista no volante e rodomoça na recepção para o embarque dos 42 passageiros no “frescão”, modelo Marcopolo III, que deixaria o terminal de Manaus por volta da 00h. Entre os passageiros, o mecânico Dirceu de Araújo, que ocupava uma das últimas poltronas nas fileiras finais do veículo, além do sargento da aeronáutica Elísio Araújo, sua esposa Altariza Alencar, e suas filhas, Edmea, Eliete e Elisangela Soares de apenas 6 meses de vida.
Por causa da segurança, e a preocupação de não querer deixar sua casa em Manaus sozinha durante o feriado prolongado de Proclamação da República, a família do sargento Elísio não estava completa no ônibus. O pai que já tinha comprado passagens para ele, esposa, as três filhas e os dois filhos, resolveu vender as passagens dos filhos, Altevir Alencar e Elísio Júnior.
“Toda minha família ía para Itacoatiara, mas de última hora papai nos perguntou se ficávamos tomando conta da casa, meu irmão e eu, e ficamos. Por volta das 11 e meia da noite, eles saíram para ir à rodoviária, pois o ônibus sairia meia noite. Durante a noite, tudo normal, mas por volta das quatro da madrugada, meu irmão teve um sonho com nossa irmã mais velha. No sonho, ela tentava contar outro sonho pra ele, mas não conseguia, acabava desmaiando. E desde essa hora não conseguimos mais dormir, porque ele me acordou, pois tinha ficado muito impressionado com o sonho”, conta emocionado, o radialista Elísio Júnior, em entrevista à equipe do Portal Amazônia que esteve em Itacoatiara no mês de julho.
ELÍSIO JÚNIOR, FILHO DO SARGENTE ELÍSIO. | FOTO: DIEGO OLIVEIRA/PORTAL AMAZÔNIA
Ao longo da estrada escura, apenas iluminada pela lua, ar-condicionado funcionando, muitos passageiros dormindo e o “frescão” se afastando cada vez mais de Manaus. Depois de horas de viagem o destino ia ficando mais próximo. Já por volta das 4h30 da madrugada de domingo (14), ao se aproximar do rio Urubu, altura da Comunidade São José restavam apenas a travessia da última balsa e poucos quilômetros para o destino final: a terra da “Pedra Pintada”, que vem do escrito indígena ita: pedra; e coatiara: gravado, pintado, escrito, dá origem ao nome da cidade: Itacoatiara.
“Era o quinto carro do dia, e a balsa tava no meio do rio. Quando eu cheguei a uns 100 metros da guarita de onde controlavam a balsa, limite para eu parar o ônibus, eles [balseiros] jogaram luz, com uma lanterna, para que eu me aproximasse da beira do rio para embarcar na balsa, eu fui reduzindo a velocidade do veículo, e quando eu procurei freio… cadê mais? Depois da plataforma onde a balsa encostava, tinham de 15 a 20 metros de profundidade, e eu não sabia. Aí, o ônibus entrou no rio, depois foi afundando”, conta o motorista José Aurélio, em entrevista exclusiva à equipe do Portal Amazônia, 41 anos depois do acidente.
ARTE: AVG/REDE AMAZÔNICA
Começava ali a maior tragédia rodoviária da história do Amazonas e uma das maiores do Brasil em número de vítimas. O mecânico Dirceu relembra o momento, emocionado por ali não ter chegado “sua hora de partir”. Pois, desde o terminal em Manaus queria ter trocado de ônibus com uns conhecidos motoristas, mas ninguém quis fazer a troca.
“Ninguém quis trocar de ônibus comigo. Eu cheguei, peguei a poltrona 42 e vim embora de Manaus. A gente parou para merendar em Rio Preto da Eva e depois em Lindóia, e lembro que tinha um cara que tava do meu lado, mas no lado do vidro. No outro lado estava o sargento com a família. E viemos embora, quando chegou em Tucunaré, o ônibus já foi reduzindo a velocidade. Eu vi a placa de 1.500 metros, a de 500 metros e eu me perguntei: Será se acabou o rio meu Deus, e ‘pouf!’, a balsa ia chegando, e o ônibus desceu o rio”, conta o mecânico em entrevista à equipe do Portal Amazônia quando esteve em sua casa, na cidade de Itacoatiara.
DIRCEU ARAÚJO, SOBREVIVENTE. | FOTO: DIEGO OLIVEIRA/PORTAL AMAZÔNIA
Dirceu vinha cochilando, mas acordou em tempo de perceber, olhando pela janela, as placas de proximidade do rio, e de repente se dar conta de que o ônibus havia entrado no rio, o mecânico saiu de sua poltrona e tentou uma saída para se salvar.
“Quando ele [o ônibus] ia descendo na água eu tentei ir para a porta da frente, e quando eu passei vi o Alex [outro passageiro] no lado de uma janelinha. Fui e vi também que o motorista estava tentando abrir a porta para um lado e a turma para o outro, aí eu me virei e fui direto na janelinha, quando vi que o Alex tinha acabado de sair, aí eu fui. Enquanto eu saia do ônibus, senti que alguém tinha segurado o meu pé, eu pensei comigo: meu amigo você pode ficar com meu pé, mas que eu boio, eu boio, e boiei longe, quando vi tinham mais dois onde eu estava”, conta o mecânico Dirceu, que boiou próximo a uma igreja na margem oposta ao local do acidente.
ARTE: AVG/REDE AMAZÔNICA
Com o “frescão” já nas águas escuras do rio Urubu, o desespero tomou conta de todos que tentavam escapar do veículo, que também tinha as janelas travadas, e pelos poucos locais que poderiam sair, José Aurélio lembra como conseguiu sobreviver.
“Quando eu estava saindo do ônibus, senti a rodomoça agarrada em mim boiando. Eu já tinha afundado duas vezes. E uma hora eu ouvi que ela desesperada disse assim: ‘Zé Aurélio, pelo amor de Deus, não me deixa morrer, não, pois tenho três filhos para criar!’. Eu fui ao encontro dela e fiz igual aos salva-vidas do Rio de Janeiro, dei uma porrada no queixo dela, para ela desmaiar e ficar leve e eu poder ajudar ela, mas não teve jeito, eu já estava cansado e de boca aberta, me engasguei com água e me afoguei”, conta o motorista.
ARTE: AVG/REDE AMAZÔNICA
Resgate e desespero dos passageiros
Com a rodomoça aflita, clamando por ajuda do motorista, que também tentava se salvar, o desespero tomou conta de José Aurélio, e se afogou.
“Eu tinha me afogado, e ela estava atracada comigo, aí os catraieiros [barqueiros] vieram e ajudaram a salvar eu e ela, pois eu já não tinha nem perna para sair. Eu me salvei graças a eles que estavam do outro lado do rio. Agradeço primeiramente a Deus e depois aos catraieiros”, conta emocionado o motorista.
Dirceu lembra que conseguiu nadar, mesmo machucado, por debaixo do rio, até a superfície já do outro lado, onde encontrou outros passageiros que também tinham conseguido sobreviver, mas que precisavam de socorro médico, pois também estavam machucados.
“Eu boiei perto de uma igreja, onde tinham uns aviões. E lá chegou o seu Marcelino [estivador], o Alex e a rodomoça, e aí vimos um taxista que tinha passado pelo ônibus e avisamos ele do acidente, nessa hora ele me cedeu o carro para levar os feridos que estavam sangrando para o hospital. Eu vim para Itacoatiara, pois fui ao hospital deixar os feridos, depois fui avisar ao delegado, isso já umas cinco da manhã, o dia amanhecendo. Avisei na garagem da empresa também e depois voltei ao lugar para acompanhar todo o resgate”, conta o mecânico.
Ao voltar ao local do acidente, já com o dia claro, Dirceu se juntou a multidão de curiosos e moradores da região, além dos familiares que não paravam de chegar em busca de informações dos passageiros resgatados. Inúmeras tentativas para tirar o “frescão” do fundo do rio, mas com o peso da água dentro do ônibus os primeiros maquinários que chegaram não tinham a força suficiente para içar o veículo.
Os bombeiros que foram de Manaus também tentavam quebrar as janelas do “frescão”, sem sucesso, pois a pressão da água era tanto que as batidas nos vidros se tornavam ineficazes. Era preciso retirar o ônibus de dentro do rio para que se iniciasse o resgate das vítimas.
“Os bombeiros de Manaus só chegaram de tarde ao local, e quem ajudou a tirar o ônibus foi o seu Luiz, da família dos Sangria. Ele tinha dois tratores que foram usados para tirar parte do o ônibus do rio. Nesse momento os bombeiros quebraram os vidros e tiravam os corpos comidos por piranhas, e perfurados por candirus, principalmente as mulheres, que tiveram as partes íntimas, seios, e rostos deformados, até por terem a pele mais fina que a do homem”, relembra o mecânico.
Quando receberam a notícia da fatalidade, os irmãos Elísio e Altevir foram levados de Manaus até a margem do rio Urubu com a expectativa de que ao menos o pai estava vivo, e acompanhar as informações do acidente.
“Já estávamos acordados desde o sonho que meu irmão teve. Quando foi umas seis e meia da manhã, um sargento da aeronáutica chegou batendo lá em casa, e dizendo que tinha tido um acidente com o ônibus, e que talvez nosso pai tivesse escapado. Então começou o corre-corre em nossas vidas e não sabíamos o quê fazer. Aí um amigo da família conseguiu um transporte e nos levou para Itacoatiara. Saímos de Manaus meio dia e chegamos ao local do acidente por volta das três e meia da tarde, e ainda estavam tentando puxar o ônibus, pois estava muito pesado. Eu vi toda essa movimentação”, relembra o radialista.
De quando o ônibus caiu nas águas do rio Urubu, com as janelas vedadas, em função do sistema de ar-condicionado do veículo, e das possibilidades de saída, até que água inundasse todo o veículo, José Aurélio lembra que em meio ao desespero e afogamentos, só alguns passageiros conseguiram se salvar.
“Quando o ônibus caiu no rio, a janela lateral e o pára-brisa saíram, e isso ajudou os passageiros a saírem. Esse ônibus era munido de 44 lugares, e então os passageiros que se salvaram eram das poltronas 41, 42, 43 e 44, os últimos, pois as duas janelas laterais de trás não eram lacradas, então eles conseguiram sair. Agora os demais não conseguiram… [voz embargada]. É muito complicado, foi muito doloroso”, conta o motorista emocionado, por telefone, à equipe do Portal Amazônia.
ARTE: AVG/REDE AMAZÔNICA
As vítimas
Com metade do ônibus içado da água até a margem do rio Urubu, os bombeiros puderam realizar o trabalho de resgate das vítimas, já no fim da tarde daquele domingo. Dos que conseguiram se salvar, uns estavam no hospital, o mecânico Dirceu acompanhava a retirada do veículo e, segundo os jornais da época, o motorista José Aurélio estava detido na delegacia de Itacoatiara.
Muito familiares já se aglomeravam nas margens do rio Urubu, além dos curiosos, quando os corpos começaram a ser retirados de dentro do 0546. No momento do resgate, o filho do sargento Elísio, logo que viu, reconheceu os corpos dos pais.
“Eu vi quando o ônibus conseguiu sair da água, e acompanhei todo o movimento, toda a situação… tirando os corpos, e de longe eu reconheci os meus pais e minhas irmãs. Segundo o relato de um dos que se salvaram, papai conseguiu quebrar o vidro do ônibus para sair, e ia se salvar, mas olhou e viu que minha mãe e irmãs tinham ficado e resolveu voltar”, conta o radialista, lembrando que os pais tinham ido à Itacoatiara apenas com o compromisso de votar.
Frustrada a expectativa de poder encontrar ao menos o pai vivo, como a notícia tinha chegado, então Elísio e o irmão ao verem os corpos dos familiares resgatados, se deram conta do que tinha acontecido, e ali foi o momento mais difícil de toda a vida dos filhos do sargento da aeronáutica.
“Foi um momento difícil, pois vi o cuidado de Deus [pausa e voz embargada] e aquele não era nosso dia de morrer, escapamos daquele acidente. [Chorando] E começou todo um processo que… por mais que o tempo passe, por mais que os dias corram, é difícil aceitar esse momento, porque nós ficamos sós nesse mundo”, conta o radialista, lacrimejando.
FAMÍLIA DO SARGENTE ELÍSIO. | FOTO: ELÍSIO JÚNIOR/ACERVO PESSOAL
Carlos Costa estava com o nome na lista de passageiros do ônibus 0546, mas ao trocar com o casal que passaria a lua de mel na “Velha Serpa”, não informou à empresa da mudança, e quando a Soltur divulgou a lista das vítimas, os familiares do jornalista foram avisados, e foi mais um momento de desespero.
“Eu só sobrevivi porque mudei de ônibus. Eu ajudei no resgate das vítimas de dentro do “frescão”, naquele momento pude ver os corpos do casal que me pediu para trocar de lugar no ônibus. Eles morreram abraçados. Como eu troquei de ônibus, meu nome apareceu na lista das vítimas, e todos pensavam que eu tinha morrido, mas minha mãe pressentia que não, e só depois de três dias consegui voltar para Manaus, onde já estavam preparando o meu velório”, lembra o jornalista, emocionado.
JORNALISTA E PROFESSOR CARLOS COSTA. | FOTO: WILLIAM COSTA/PORTAL AMAZÔNIA
Segundo o historiador e professor Frank Chaves, naquele dia 14 de novembro a cidade de Itacoatiara viveu o seu maior luto. Em todas as ruas, praticamente, tinham velórios. A terra da “Pedra Pintada” estava em prantos, desanimada e a expectativa da eleição na segunda-feira, 15 de novembro, era a pior possível.
“O funeral se espalhou pela cidade. Era tanta gente que morta, que nos 12 bairros que a cidade tinha na época, todos tiveram funeral, e isso foi muito chocante. Eu era pequeno, mas me recordo da comoção da família de um vizinho que faleceu no acidente, e estava sendo velado. Até hoje esse fato é lembrado pelos moradores, pela fatalidade que ocorreu atingindo muitas pessoas”, conta o historiador.
Ao todo, 39 vítimas fatais no acidente do Rio Urubu. Segundo os jornais da época, a empresa Soltur, responsável pelo ônibus, encomendou todos os caixões e mandou levar às famílias. Desses, 8 corpos foram velados e enterrados em Manaus.
A culpa
Em 2018, completam 42 anos da fatalidade, e muitas pessoas que vivenciaram aquela época já não estão mais vivas, no entanto, os familiares ainda recordam do acidente, o quê, segundo o motorista José Aurélio, não contentes, poderiam querer vingança.
“Por duas vezes tentaram me matar em Manaus. Uma vez eu estava levando o doutor Pedro em um fusquinha para um banho no Tarumã [bairro de Manaus], e um motorista de uma caçamba jogou o caminhão pra cima de mim, eu tive que subir na área do Vivaldão [antigo estádio] para não me acertar. Nesse mesmo dia, eu conversando com o doutor Pedro, perguntei sobre o acidente do rio Urubu, querendo saber a opinião dele. E ele disse que o motorista corria grande perigo de ser morto, mas ele não sabia que era eu, e a orientação dele era de que o motorista do acidente deixasse o Amazonas. Eu, na época [cerca de 5 meses depois do acidente], arrumei uma lambreta e passei 12 dias dirigindo para chegar onde moro hoje”, contou o motorista, por telefone, à equipe do Portal Amazônia.
JOSÉ AURÉLIO DUARTE, O MOTORISTA. | FOTO: JOSÉ AURÉLIO DUARTE/ACERVO PESSOAL
Dirceu, que acompanhava a retirada do ônibus, lembra que a população estava polvorosa com o acidente e queriam, a qualquer custo, encontrar o culpado, e que naquele momento, o motorista era o principal responsável pelo acidente, segundo o quê as pessoas relatavam.
“Eu estava debaixo de uma árvore acompanhando a movimentação de retirada do ônibus e resgate das vítimas, e perto tinha uma mulher que falava que queria pegar o motorista. Eu tive que discutir com ela, e respondi que ele não teve culpa, que foi um acidente. E ela, sobressaltada, me perguntou o porquê, foi quando eu disse que estava no ônibus, tinha me salvado e que o motorista não teve culpa, pois o ônibus não teve freio para parar”, conta o mecânico.
O procedimento de retirada dos corpos tinha chegado ao fim, e dado prosseguimento aos processos de reconhecimento das vítimas, principalmente pela desfiguração dos rostos das pessoas, e entrega aos familiares. O ônibus foi içado completamente para fora do rio e periciado, e após os procedimentos legais foi devolvido à empresa Soltur.
José Aurélio lembra que houve várias perícias e que todos os laudos apontavam sua inocência no acidente.
“Mas o que mais me valeu foi o seguinte: tiveram três laudos, o da Polícia Civil e Técnica, da Cruz Nordeste, e do Exército, pois entre os passageiros morreram dois sargentos e uma oficial, uma coisa assim. As palavras dos laudos eram diferentes, mas o sentido era o mesmo, pois todos me inocentaram, entendeu?”, disse o motorista do ônibus 0546.
Piranhas e cenário de filme de horror
O rio Urubu é conhecido pelos ribeirinhos como bom para pesca, e entre diversidade de peixes, como o tucunaré, as piranhas são as grandes vilãs, pois gostam de carne e são atraídas mais facilmente do que os demais peixes.
Dos curiosos que acompanham o resgate das vítimas, uma coisa chamou a atenção inclusive de Dirceu, a fisionomia das pessoas mortas sendo retiradas do ônibus.
“Eu estava acompanhando o resgate, e vi assim que os bombeiros conseguiram quebrar as janelas do ônibus e começar a retirar os corpos. O cadáver do seu Washington foi um dos que estavam muito deformados, as piranhas só deixaram os pés nos sapatos. Agora as mulheres, que tem a pele mais sensível, estavam muito comidas. Eu acredito que tenham sido as piranhas e o candiru que deformaram elas, pois quando tiraram os corpos tinham aqueles buracos como o candiru faz”, relatou.
PIRANHAS | FOTO: WILLIAM COSTA/PORTAL AMAZÔNIA
O professor doutor Edinbergh Caldas de Oliveira, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), especialista em ecologia dos peixes amazônicos, neste acidente em especial, acredita que as piranhas foram as grandes vilãs e acabaram pela deformação dos corpos, mas não as possíveis causadoras da morte dos passageiros do “frescão”.
“Provavelmente os passageiros morreram por afogamento, e depois disso as piranhas chegaram para se alimentar. No rio Urubu são comuns e fáceis de serem encontradas. O barulho e o sangue são suas principais iscas, e geralmente elas atacam em períodos de vazante (época do acidente), o que favorece uma concentração maior de piranhas em certos trechos. Como ali na região era uma passagem muito movimentada, possivelmente elas encontravam alimentação fácil, inclusive pelos restos jogados direto por moradores no rio. E que, possivelmente, fez com que aquele momento fosse o ideal para o ataque delas às vítimas do acidente”, conta o professor.
Quanto ao famoso candiru, temido por poder entrar através da uretra e outros orifícios do humano, o professor ressalta que dificilmente eles se fizeram presentes nos corpos das vítimas do acidente, já que o peixe prefere carne podre e é atraído por secreções.
“Como os corpos não ficaram muito tempo embaixo da água, o candiru-açu possivelmente não os atacou. Geralmente ele perfura a pele, quando o corpo já está em estado de putrefação, que é o que o atrai, e não logo, como é o caso das piranhas, que atacaram as vítimas”, ressalta o professor.
FOTO: REPRODUÇÃO/O JORNAL DE ITACOATIARA
O desfecho
O fatídico acidente ainda deixou muitas marcas nos envolvidos.
Na segunda-feira, feriado de 15 de novembro de 1976 houve as eleições municipais, e mesmo em luto, a população elegeu o industriário Chibly Abrahim para o mandato de prefeito de Itacoatiara.
O radialista Elísio Júnior, que na época do acidente tinha 13 anos, e o irmão Altevir, que tinha 15 anos, foram criados pelos tios. Elísio vive atualmente em Itacoatiara e Altevir em Manaus.
O mecânico Dirceu lembra que foi 52 vezes ao Fórum de Manaus para testemunhar do acidente. E até hoje não teve coragem de assistir a um documentário de uma emissora de televisão inglesa fez sobre o acidente. Lembra que nunca quis dinheiro algum da Soltur, mas queria justiça pedindo que a empresa depositasse uma quantia no banco e que servisse de amparo aos dois filhos do sargento Elísio que ficaram órfãos.
O motorista José Aurélio vive em outro estado, e preferiu não falar abertamente sobre o assunto, pois lembra que o acidente ainda mexe muito com ele. Ressaltou várias vezes que não há culpados, pois em acidente não se tem culpados. E autorizou que o teor da conversa ao telefone fosse divulgado, mas mesmo com as tentativas da equipe do Portal Amazônia, pedindo para que ele pudesse recontar a história, José Aurélio apenas contou poucos trechos, dos quais foram usados nesta reportagem.
A rodomoça Maria de Lurdes ainda não foi encontrada pela equipe do Portal Amazônia, mas em conversa com José Aurélio, ele lembra que a encontrou em outro estado a alguns anos, mas não mantém contato.
Outros sobreviventes, segundo os jornais da época foram: Marcelo Correa de Oliveira, Edna Marques de Freitas e Alex Fred Gomes da Silva. Os três, segundo populares relataram à equipe do Portal Amazônia, quando esteve em Itacoatiara, já faleceram.
A empresa Soltur não existe mais, e não encontramos ninguém que pudesse falar conosco.
Os processos do caso não foram localizados nas buscas iniciais ao Tribunal de Justiça do Amazonas, por falta de informações mais detalhadas.
Em 1988, a cidade de Itacoatiara ganhou a ponte Mamud Amed sobre o rio Urubu, exatamente no trecho onde ocorreu ocidente, interrompendo a travessia dos veículos através de balsas.
O jornalista amazonense Roberval Vieira de “O Jornal de Itacoatiara”, assim como Carlos Costa, de “A Notícia”, e outros jornalistas da época, acompanharam os momentos de resgate e produziram materiais para seus veículos de trabalho. Carlos falou com nossa equipe, mas Roberval, com problemas de saúde e situação delicada na família, preferiu não reviver os fatos daquela madrugada de 14 de novembro de 1976.
FOTO: REPRODUÇÃO/O JORNAL DE ITACOATIARA
Equipe Portal Amazônia
Pauta: Lucas Raposo
Produção e imagens: Diego Oliveira e William Costa
Reportagem: William Costa
Revisão: Rafael Campos
* Matéria premiada na categoria Jornalismo com o Troféu Melhor do Jornalismo na 9ª. Edição do Prêmio Amazonense de Propaganda e Marketing – 2018.
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