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Da receita médica à imortalização: a história de ‘Hutukara Yanomami’ e a visão do compositor

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“Diante daquele meu sofrimento, tentando me respeitar, eu clamei: ‘Poxa, ouve a minha voz, né? Porque eu não tô bem, eu tô mal. E a música surgiu nessa ambientação de muito sofrimento meu”. A música é Hutukara Yanomami – Um Canto para Davi Kopenawa. Quem transcendia entre dor e criação era Ronaldo Barbosa, compositor do Boi Caprichoso por mais de quatro décadas.

Era dia 26 de fevereiro de 2023 quando Ronaldo pediu a uma enfermeira do hospital Jofre Cohen, em Parintins, uma receita médica em branco. Não muito tempo atrás, recebeu uma mensagem de Ericky Nakanome, presidente do conselho de arte do Caprichoso, pedindo uma toada sobre os Yanomami. Ronaldo se viu ali, em luta pessoal, do leito de um hospital, enfrentando sequelas da Covid-19 e encarando na TV a luta de resistência das terras invadidas pelo garimpo. Luta de fome, de dor, de morte.

Segundo Ronaldo, a inspiração para a composição levou em conta o sofrimento do povo Yanomami divulgada em rede nacional (Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

Segundo Ronaldo, a inspiração para a composição levou em conta o sofrimento do povo Yanomami divulgada em rede nacional (Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

“Essa toada teve várias etapas. O primeiro lampejo que eu tive dessa toada foi quando eu vi na TV aquela cena parecendo a Pietà (representação artística da Virgem Maria com o corpo morto de Jesus nos braços), daquela mãe com aquele filho esquálido nos braços e o peito seco sem leite… A criança já pra morrer ali, o Yanomami… Então eu pedi à enfermeira que trouxesse um papel pra mim, uma receita”, lembra Ronaldo.

É nesta receita, guardada amassada dentro da carteira já desbotada com o tempo, que Ronaldo riscou os versos do que viria a ser a mais emocionante toada do álbum de 2023 do Caprichoso: “O Brado do Povo Guerreiro”. Em tom de prece, já imortalizada nos vocais de Patrick Araújo, a canção é uma súplica pela vida. É a imortalização do ser. Uma oração para seguir ali. Continuar “estando”.

A receita ainda é guardada por Ronaldo dentro da carteira que leva no bolso (Fotos: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

A receita ainda é guardada por Ronaldo dentro da carteira que leva no bolso (Fotos: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

‘Minha casa, minha terra, minha mãe’

Com flutuações entre a cosmologia Yanomami e a espiritualidade, por toda a composição, Ronaldo se debruça em versos bíblicos para dar vida a “Hutukara”. Uma alegoria ao seu próprio momento. “Quando eu liguei os pontos, eu também vi sofrimento do lado de lá e saiu ‘Hutukara’, que quer dizer minha casa, minha terra, minha mãe”.

“Yanomami eu sou. É tudo o que sou. E ninguém poderá calar a minha voz” é o verso que abre a faixa 9 do álbum. Em Êxodo 3:13-15, é o que Deus diz a Moisés.

“E aí eu fui desenrolando a música, né? Tem aquela cena de Isaías 49:15, que diz ‘qual é a mãe que vê o seu filho com fome e não vai dar o peito pra ele? E mesmo com a dor ela me esqueça, eu não te esquecerei jamais”.

Isaías 49:15 na receita médica de Ronaldo Barbosa se tornou: “Meus dias estão chegando ao fim, eu e meu curumim. Omama se eu te esquecer, não te esqueças de mim. (…) Eu ouço a tua voz, não deixarei o céu cair. Eu sinto a tua dor, e não te deixarei jamais”.

Com mais de 100 toadas no currículo, Ronaldo tem dificuldade em classificar o resultado final de Hutukara Yanomami. Ele enxerga, assim como toda a nação azul e branca, o canto como uma obra à parte da classificação “toada”. Hoje, recuperado e celebrado pela composição, ele se emociona com o sucesso.

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

“Eu acho que ninguém consegue classificá-la. Eu acho que nem o maior crítico de música vai conseguir. Se o pedido do Ericky fosse hoje, eu já não faria a mesma coisa. Ou, se fosse daqui 10 minutos, eu já não faria a mesma coisa. Eu acho que as coisas vêm desenhadas. Hoje eu já tô bem, graças a Deus. Me recuperando e feliz. E esse é o pagamento por tantos anos, né? Mais de 100 toadas e uma dedicação praticamente eterna por uma nação, pelo povo e por uma cultura que eu tanto amo”.

Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA

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