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Atiradores e caçadores usam aplicativos e redes de clubes para contornar regras de porte de arma

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Com o porte de armas proibido, caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) usam subterfúgios para andarem armados independentemente do horário e local, sem seguir o rito da lei. Os truques vão do uso de aplicativos com geolocalização para mapear entidades de tiros próximas a uma rede de clubes para “os viciados no cheiro da pólvora” que querem “manter o treino em dia” em várias cidades. Para mapear as principais estratégias, o GLOBO conversou com CACs, donos de entidades de tiro, especialistas em armas e profissionais da segurança pública. O Exército não comentou as práticas.

Até 2003, qualquer brasileiro com mais de 21 anos podia ir a bares, shoppings, parques e teatros com uma arma. Com o Estatuto do Desarmamento, o porte foi proibido para civis, com exceções para poucas categorias profissionais. Em 2017, no governo Michel Temer (MDB), uma portaria do Exército mudou esse cenário ao regulamentar o porte de trânsito para os CACs. O policial federal Roberto Uchôa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pesquisou os clubes de tiro e no livro “Armas para quem?”, retrata essa virada.

 

A categoria ganhou o direito de se deslocar de casa até o clube de tiro ou competição com a arma municiada e pronta para uso. Em 2019, um decreto do presidente Jair Bolsonaro (PL) reforçou o porte para a categoria. Pela subjetividade ao declarar o deslocamento, o porte de trânsito criou uma confusão jurídica. Em junho, havia no Brasil 673.818 CACs com direito ao porte de trânsito, expedido pelo Exército, diante de 13.971 portes ativos para defesa pessoal registrados pela Polícia Federal.

— O porte de trânsito para CACs é um prato cheio para a ilegalidade. Depois das normativas infralegais do Bolsonaro, eles passaram a criar mecanismos para mais gente circular armada pelo país. O resultado é mais incidentes de violência — afirma a advogada Juliana dos Santos, coordenadora jurídica da Rede Liberdade.

Um dos subterfúgios adotados recentemente é a criação de redes de clubes de tiros, segundo um atirador que pediu anonimato. Uma delas, a Companhia de Pólvora, de Joinville, permite ao filiado pagar a anuidade de apenas um clube mas frequentar mais de 60, em 13 estados.

— As garantias não são ilegais, mas são imorais — defende o atirador.

Em suas redes sociais, o “clube dos clubes de tiros” se dirige aos que não conseguem ficar longe do estande “mesmo quando em viagem, a lazer ou a trabalho”. Procurada, a Companhia da Pólvora não se pronunciou.

O uso de aplicativos com a geolocalização dos clubes é outra artimanha. O usuário consegue uma lista das entidades mais próximas, com a opção de agendar um treino para minutos depois. Seria um álibi, caso o CAC seja parado pela fiscalização.

Como uma forma de dar cobertura aos mal-intencionados, de acordo com especialistas, há ainda os clubes com funcionamento 24 horas. Essas entidades permitem que o atirador circule armado à noite e de madrugada. O clube G16 Universidade do Tiro, em São Paulo, intitula-se o primeiro do Brasil que nunca fecha. Seu proprietário, Gustavo Pazzini, responde às críticas com ironia.

— Acho magnífico, quem teve essa ideia é visionário — diz ele, para em seguida se explicar. — Quem conhece minha história sabe que não montei para dar porte 24 horas. Um pouco antes de abrir, teve um furto num clube próximo. Pensei: “se eu for roubado também, não vou me reerguer nunca mais”. Comecei a dormir lá para fazer a segurança, e percebi que os frequentadores foram ficando, queriam treinar até mais tarde.

‘Porte abacaxi’

Profissionais da segurança reclamam da dificuldade de fiscalizar os infratores, com a impossibilidade de comprovar que não estão a caminho de um clube de tiro. Mas os CACs alegam que o porte de trânsito acaba por colocar em risco a categoria, já que “servidores públicos abusam da autoridade e levam para a delegacia mesmo aqueles dentro da lei”. No universo dos CACs, a permissão é conhecida como “porte abacaxi”.

O termo é atribuída ao advogado César Mello, de 40 anos, candidato a deputado estadual no Paraná. Atirador há mais de uma década, Mello diz ter criado seu canal no YouTube para explicar aos CACs que “o porte de trânsito é um instituto jurídico diverso do porte de arma” e qualquer desvio pode ter consequências graves, inclusive a prisão. A fruta virou sua marca: está na logo da campanha eleitoral e na vinheta do canal.

— Tem de descascar o abacaxi. Entender que existe limitação e precisa agir de acordo com a limitação. Algumas pessoas tentam exacerbar — admite Mello.

Em um de seus vídeos, Mello afirma ter dado palestras sobre o porte abacaxi para mais de 6 mil pessoas, com uma “técnica jurídica de desobediência civil de verdade, aquela em que o Estado quer te prender, mas não consegue”. E divulga que fará uma grande live para desvendar os segredos do porte abacaxi, dizer aquilo que “não pode ser dito” e ensinar os espectadores a se tornarem “imprendíveis”. Explica que a live não ficará gravada e tomará medidas contra quem reproduzir o conteúdo sem autorização. Se a técnica está de acordo com a lei, por que não pode ser pública?

— Porque foi um evento de arrecadação de campanha. Se deixasse no ar, ninguém iria doar. Foi um truque de marketing. Nada do que foi falado lá é diferente dos mais de 800 vídeos que tenho na internet — responde.

Sem punição

Um caso recente ocorrido na região do Campo Belo, em São Paulo, dá uma ideia dos riscos do porte de trânsito inconsequente. Um CAC e empresário do ramo de farmácias atirou em um ladrão já rendido que havia tentado roubar seu relógio. Mesmo denunciado por porte ilegal de arma de fogo e tentativa de homicídio e preso, não foi descredenciado do clube de tiros. Até a última sexta-feira, 10, o Exército não havia informado à entidade a qual ele é filiado sobre o ocorrido.

O empresário João Henrique Marfim Stakowiak, de 38 anos, abastecia seu Porsche num posto de combustível quando foi abordado por um homem armado com um simulacro de arma de fogo e que tentou levar seu relógio. Após a tentativa de roubo, o suspeito fugiu, foi abordado por um policial civil, que o rendeu após um disparo na perna. Mesmo com o suspeito rendido e baleado, Stakowiak se aproximou e atirou contra ele: “você ia me matar no posto”, alegou. O suspeito foi socorrido e levado a um hospital.

De acordo com o boletim de ocorrência, Stakowiak disse aos policiais ser CAC. Afirmou que, depois de abastecer o carro, iria para sua empresa e ao clube de tiros G16, no bairro de Moema, na região Sul. Acabou preso em fragrante por tentativa por tentativa de homicídio e porte ilegal de arma, uma vez que “ultrapassou sobremaneira as atribuições de um CAC, pois utilizou o armamento, aparentemente, para promover justiça com as próprias mãos, sem demonstrar em momento algum que eventualmente estaria se dirigindo para qualquer clube de tiro”, segundo o documento. Sua pistola 9mm foi recolhida.

Stakowiak era filiado ao clube G16 Universidade do Tiro de Moema desde maio, segundo Gustavo Pazzini, o proprietário da rede. A unidade é voltada para o público A+, com funcionamento 24 horas por dia e anuidade de até R$ 8 mil. Pazzini soube pela reportagem que o filiado se envolveu numa tentativa de homicídio.

– A partir de agora, vamos desligá-lo. Ele não poderá mais entrar no clube enquanto ele estiver respondendo a processo – explicou Pazzini. – Temos mais de 5 mil filiados, não é a primeira vez que temos de desligar alguém por cometer alguma infração ou algo que o Estado reconhece como infração.

Segundo o Tribunal de Justiça, a prisão em flagrante de Stakowiak foi convertida em preventiva e ele está no centro de detenção provisória 2, de Guarulhos. Sua defesa preferiu não se pronunciar no momento. Stakowiak tinha registro de caçador, atirador e colecionador desde o ano passado. O Exército não respondeu se o documento foi cassado.

Foto: Edilson Dantas

*O Globo

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