Contrário à exploração de gás, em Silves e Itapiranga, Ministério Público Federal articula procedimentos internos e sigilosos com a Funai para barrar empreendimentos da Eneva
O processo de exploração de petróleo e gás nos municípios de Silves e Itapiranga, no estado do Amazonas, pela empresa Eneva, poderá vir a ser a nova Lava Jato brasileira.
Tudo indica que o embate jurídico, técnico e político (ambiental) pode acabar se transformando em um caso de manipulação, suspeição e até interferência entre poderes da República.
Assim como ocorreu com o ex-procurador federal Deltan Dellagnol, e o ex-juiz, hoje senador Sérgio Moro (PR-PR), que “trocavam figurinhas” internas e sigilosas antes de interrogar e julgar os acusados da operação Lava Jato, há indícios que tais procedimentos podem estar ocorrendo no caso da exploração de petróleo e gás no Amazonas.
Só para lembrar. No caso da Lava Jato, após uma dezena de condenados, incluindo o agora presidente da República, Lula da Silva, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou todas as condenações dos réus e declarou sob suspeição as sentenças de Moro.
De forma semelhante, pode estar ocorrendo uma espécie de “indução técnico-jurídica” entre a Procuradoria da República no estado do Amazonas, por meio do procurador Fernando Merloto Soave, e órgãos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Esses indicativos constam em documentos, adquiridos por meio da Lei de Acesso à Informação, que chegaram ao conhecimento do BNC Amazonas.
Contatos
Nos encaminhamentos para a instauração de uma ação civil pública, transcorre o procedimento extrajudicial n. 1.13.000.000887/2021-65, instaurado no âmbito do 5º Ofício, da Procuradoria da República no Amazonas.
Tal procedimento, aberto em 2021, é para “apurar possíveis impactos a povos indígenas e comunidades tradicionais decorrentes da exploração de petróleo e gás pela empresa Eneva no município de Silves e região”. Desde então, o MPF tenta barrar os empreendimentos na Justiça, sob diversos argumentos, mas não tem obtido sucesso.
Agora, a tese que vem sendo trabalhada é de que haveria indígenas isolados a cerca de 30 quilômetros das operações da empresa. Caso confirmado, isso levaria à interdição total em um perímetro definido pelas autoridades. E poderia acontecer tanto pela via administrativa, por portaria da Funai, quanto por decisão judicial.
Dessa forma, o MPF, entre os inúmeros documentos e correspondências trocadas com a Funai, solicitou informações sobre a área proposta (técnica) para a restrição de uso dos indígenas isolados do Caribi (Amazonas), ou seja, qual perímetro deveria ser interditado.
Inclusão da Eneva
Assim, no ofício 355/2024, de 7 de outubro de 2024, o procurador Fernando Merloto Soave indica que perícia técnica em curso, no âmbito do próprio MPF, estava concluindo pela desnecessidade de inclusão de área da Eneva, em possível interdição, decorrente do suposto avistamento de isolados.
Nesse sentido, solicita que a Funai lhe encaminhe, com urgência, cópia de mapa de interdição incluindo a área da Eneva. Tal documento foi encaminhado a Leonardo Lenin Covezzi do Val dos Santos, coordenador-geral de indígenas isolados e recém- contatados.
“Solicito que, no prazo extraordinário de cinco dias, informe a área proposta (técnica) para a restrição de uso dos isolados do Caribi, tendo em vista que foi solicitada perícia técnica no âmbito do MPF. A perícia tem previsão de conclusão no dia 17/10/2024 e propõe análises técnicas para subsidiar eventual ação civil pública ou medidas de proteção a estes povos que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade e risco”, afirma o procurador Fernando Merloto no documento.
Área sem identificação
E prossegue o representante do órgão ministerial:
O ofício de Merloto, que lembra a Funai do pedido de suspensão dos empreendimentos em Silves e Itapiranga, orienta ainda que a disponibilização da área técnica para restrição de uso, pela Funai, tende a trazer elementos com maior precisão e legitimidade, que deverão ser construídos pelo próprio órgão indigenista nacional.
Por fim, o agente do Ministério Público Federal solicita resposta, por meio do protocolo eletrônico, caracterizando tratamento sigiloso.
Proposta de restrição
A resposta a esse ofício do MPF veio uma semana depois. Em 14 de outubro de 2024, por meio do ofício nº 1690/2024/DPT/Funai (com informações restritas), a diretora de proteção territorial da fundação, Maria Janete Albuquerque de Carvalho, encaminha ao procurador Fernando Merloto Soave os dados cartográficos da proposta de Restrição de Uso Igarapé Caribi em formato pdf e shapefile.
No entanto, a diretora ressalta que se tratam de documentos preparatórios, no âmbito do processo administrativo para publicação de portaria de Restrição de Uso, devendo ser tratados como extremamente confidenciais.
Limites da lei
A reportagem perguntou a opinião da advogada Patrícia Mendanha Dias, sócia responsável pela área ambiental, do escritório Bichara Advogados, sobre o caso.
Segundo a jurista, o Ministério Público tem a função de fiscalizar a aplicação da lei, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.
Por isso, diz a advogada, é importante que sua atuação seja realizada nos estritos limites da lei, em respeito às instituições e ao pacto federativo.
“Pode ofender a segurança jurídica e o próprio regime democrático a atuação dos representantes do Ministério Público que impliquem desconsideração dos atos proferidos por entes competentes, os quais possuam atribuição técnica e jurídica para liberação das atividades econômicas”.
E prossegue a advogada ambiental:
“Na maior parte dos casos, esse controle excessivo pode também não favorecer a defesa dos direitos das populações mais vulneráreis, tampouco a iniciativa privada, visto que o enfraquecimento dos regimes democráticos e a insegurança podem gerar um ambiente desfavorável aos negócios e ao desenvolvimento de ações de salvaguarda das populações”, finaliza a advogada Patrícia Mendanha Dias.
Atuação controversa
No ano passado, o BNCAmazonas revelou outra atuação controversa do mesmo procurador, com uma gravação em que ele se oferecia para pagar despesas de indígenas.
“A juíza Jaiza está indo pra lá. Eu estou indo pra gente conversar com todos. Todo e qualquer custo que vocês tiverem de combustível, de deslocamento, é só pegar o recibo que vai ser ressarcido. Já confirmei com a juíza Jaíza”, diz Merloto no áudio. A divulgação original foi feita pelo site O Antagonista.
Povos isolados
O novo campo de atuação do Ministério Público Federal para se opor à exploração de petróleo e gás em Silves e Itapiranga, no Amazonas, volta-se para os povos indígenas, especialmente, os isolados. Antes, argumentava que a área de exploração adentrava unidades de conservação. O que foi rechaçado pelos empreendedores na Justiça.
Embora a área do procurador Fernando Merloto esteja construindo sua ação civil pública em cima dessa tese, a própria Funai não tem nenhuma comprovação da ocorrência de indígenas isolados na região.
Documento da fundação, enviado ao MPF, destaca apenas “probabilidade alta de existência de isolados”, em função de relatos colhidos e de uma fotografia fornecida por integrantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que teriam realizado expedição na área.
“Ainda que não tenha sido possível confirmar de maneira inequívoca a presença de população indígena isolada na área, a possibilidade de confirmação é alta. Desse modo, são necessárias novas expedições”, afirma representante da Funai em documento encaminhado ao MPF.
Mesmo assim, sem confirmação de isolados, a diretora de proteção territorial da Funai, Maria Janete Albuquerque de Carvalho, faz a seguinte recomendação:
“Diante do quadro apresentado, recomendamos fortemente a suspensão imediata das atividades de exploração de gás realizadas pela empresa Eneva e do plano de manejo florestal por parte da Mil Madeireiras Preciosas”.
Foto periciada
A imagem de suposto avistamento de índios isolados na região dos municípios de Silves e Itapiranga, publicada por dois sites de notícias, um nacional e outro local, passou por perícia técnica para constatar a veracidade da imagem.
A análise foi realizada pelo perito Allan Almeida Reis, especialista em perícias criminais e ciências forenses. Além disso, ele é perito judicial do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), desde 2012, do Tribunal Regional Federal, da 1ª Região (TRF-1), e presidente nacional da Comissão de Perícias forenses da OAB.
“O parecer técnico em questão é de natureza indireta, envolvendo uma imagem estática, e tem a finalidade de verificar sua autenticidade e investigar a existência de possíveis alterações fraudulentas, como montagens, manipulações ou supressões”, afirma o laudo preliminarmente.
Ainda, de acordo com o laudo pericial, o exame foi conduzido com a finalidade de investigar a imagem (fotografias) em questão, elementos que possam indicar alterações que, de alguma forma, alterem o conteúdo da imagem registrada, resultando em uma representação dos eventos diversa daquela originalmente obtida.
Indícios de manipulação
Em outras palavras, trata-se de indícios de adulteração (exame destinado a determinar se os registros de imagens passaram por alguma modificação).
“Sem desconsiderar qualquer avaliação adicional, que possa ser pertinente ao caso em questão, é possível afirmar que a imagem analisada não se mostra autêntica, apresentando indícios de manipulações que sugerem possíveis adulterações tais como: montagens, adições e supressões”.
E conclui:
“É importante ressaltar, contudo, que esta conclusão é preliminar e depende da apresentação dos arquivos originais para que uma investigação mais aprofundada possa ser realizada”, diz, em seu laudo técnico, o presidente nacional da Comissão de Perícias Forenses da OAB, Allan Almeida Reis.
Conflito de interesses
Após o recebimento da foto, a Funai organizou nova expedição à região, entre os dias 16 de março e 4 de abril de 2023, em conjunto com a CPT e a 350.org. Essa ong tem como missão lutar por um mundo sem combustíveis fósseis. Nessa expedição, a Funai afirma ter encontrado um “artefato atribuído a indígenas isolados”.
Mas isso, naturalmente, gera desconfiança em pessoas que têm conhecimento do caso. Pois, isso, interessava a alguns integrantes da expedição, convidados pela Funai.
Interdição
Para convencer a Funai a publicar a portaria de restrição de uso, mesmo antes da comprovação da ocorrência de isolados, o Ministério Público realizou reunião, em 30 de setembro de 2024, com representantes de entidades ambientalistas e indigenistas, incluindo a CPT, a CIMI e a 350.org.
De acordo com especialistas no assunto, caso a portaria seja assinada pela presidente da Funai, Joenia Wapichana, ninguém poderá entrar no perímetro de isolamento. Todos os moradores dentro dessa área terão que ser retirados imediatamente e as atividades econômicas interrompidas.
Isso significa que a exploração de gás na região seria interditada, levando ao apagão do estado de Roraima, que é abastecido por uma usina térmica que utiliza o gás natural dessa região. No limite, dependendo da abrangência, pode ocorrer até mesmo a remoção de Silves e Itapiranga.
Posição da Funai
Em resposta a uma série de questionamentos, feita pelo BNC Amazonas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) emitiu nota com alguns esclarecimentos.
Destacou que o órgão tem competência para atuar em processo de licenciamento ambiental de qualquer empreendimento (Portaria Interministerial nº 60/2015 e pela Instrução Normativa Funai nº 02/2015).
No caso em questão, a Funai afirma que não recebeu qualquer documento do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), solicitando licenciamento ambiental da atividade de exploração de gás no Campo Azulão, da empresa Eneva, localizada nos municípios de Silves e Itapiranga, no estado do Amazonas, antes da emissão das licenças ambientais.
Do mesmo modo, com base nas informações apresentadas pela procuradoria federal especializada do MPF, a Funai pediu informações ao órgão licenciador e à empresa Eneva sobre o empreendimento para subsidiar a manifestação no processo de licenciamento ambiental.
Suspensão das atividades
Como não houve resposta, a Funai diz que reiterou a solicitação com a seguinte recomendação:
“Tendo em vista o relato de impactos do empreendimento às comunidades indígenas da região, com preceito nos princípios da Prevenção e da Precaução, recomendamos a suspensão do curso do processo de licenciamento ambiental das atividades de exploração de gás denominada Campo Azulão, localizadas nos municípios de Silves e Itapiranga, no Estado do Amazonas, até que seja devidamente regularizado o Componente Indígena”.
Por fim, a Funai cita uma série de ofícios, protocolos e notas técnicas que recebeu do Ipaam, sobre o empreendimento da Eneva Azulão. No entanto, tais documentos não indicaram providências que viabilizem a regularização do componente indígena do processo de licenciamento ambiental.
Manifestação da Eneva
Sobre o suposto “conluio” entre o MPF e a Funai, semelhante ao caso da operação Lava Jato, a Eneva disse receber essas informações com “preocupação”. No entanto, diz a nota da empresa, “a companhia mantém a confiança de que as decisões conclusivas do governo e da justiça brasileira são sempre pautadas pela legalidade e pela impessoalidade”.
“A Eneva sempre cumpriu estritamente todos os normativos aplicáveis aos seus projetos. No caso da região de Silves e Itapiranga, isso inclui a regulação da ANP e da Aneel, além da legislação ambiental. Para obtenção da licença ambiental, a empresa diz que comprovou não haver terras indígenas demarcadas ou em estudo no perímetro determinado pela legislação. A companhia segue à disposição de todas as autoridades competentes para apoiar a elucidação dos fatos”, finaliza a nota.
Sem resposta
O BNC Amazonas também procurou o Ministério Público Federal no Amazonas/Procuradoria da República para se manifestar, mas até o fechamento e publicação desta reportagem não houve retorno. Mas, assim que se pronuncie, suas manifestações serão incluídas na matéria.